Câncer de Bexiga e a Boiada

Porque gado a gente marca
Tange, ferra, engorda e mata
Mas com gente é diferente
(Geraldo Vandré)

Num momento de consternação geral, atrevo-me a escrever sobre o câncer da bexiga, com a esperança íntima de atenuar aflições indevidas e demonstrar que a ciência médica não aceita a inexorabilidade do sofrimento e da morte, que ronda esta doença.

Se estatísticas produzidas este ano pela Sociedade Americana de Câncer (EUA) forem válidas para o nosso país, em 1998 cerca de 30 mil brasileiros e 10 mil brasileiras serão atingidos pelo câncer de bexiga. Ademais, 8.500 portadores morrerão em decorrência. A eloquência desses números deixa de ser tão incômoda se eles forem lidos de outra maneira. Apenas 1 de cada 3.500 brasileiros com mais de 50 anos terá sua vida ceifada pela doença.
As causas precisas do câncer de bexiga são ainda ignoradas, sendo certo que o hábito de fumar cigarros e o contato prolongado com aminas aromáticos (compostos orgânicos utilizados em indústrias de tintas, borracha, têxteis e gráficas) estão presentes em cerca de 60% dos casos. Estudo realizado na cidade de Boston em 1984 mostrou que homens que consomem mais de dois maços de cigarros por dia têm cinco vezes mais chance de serem atingidos pela doença e este risco é ainda maior nas mulheres fumantes. Curiosamente, o consumo de charuto e cachimbo não oferece o aparecimento desse câncer.
Para que se possa entender o comportamento do câncer de bexiga, deve-se levar em conta as suas três formas de apresentação. Existe um primeiro tipo no qual o crescimento descontrolado das células cancerosas fica restrito às camadas mais superficiais e internas da bexiga. Estas lesões, chamadas de superficiais, são encontradas em cerca de 75% dos novos casos da doença e raramente produzem metástases (disseminação das células tumorais com aparecimento de focos cancerosos em outros órgãos).

Um segundo tipo, denominado infiltrativo, é encontrado em 20% dos novos casos e caracteriza-se por penetração do tumor nas camadas mais profundas da bexiga, atingindo músculo e gordura. Esta forma de doença, se não tratada a tempo, pode gerar metástases e ceifar a vida do paciente.
No terceiro tipo, chamado metastático e que atinge cerca de 5% dos casos recém-descobertos, o tumor apresenta-se mais avançado, envolvendo gânglios linfáticos, fígado, pulmão ou ossos. A cura, antes difícil nestes pacientes, é atualmente observada em um número razoável de casos tratados com quimioterapia.
Em cerca de 70% dos pacientes o câncer de bexiga manifesta-se sob forma de hematúria, ou seja, presença de sangue vivo na urina. Outros 20% apresentam os chamados sintomas irritativos urinários, como aumento da frequência das micções e ardor para urinar. Vale lembrar que na grande maioria dos casos, o aparecimento dessas manifestações está relacionado com problemas urinários mais simples, como cálculos e infecções da bexiga. Contudo, a possibilidade de câncer não pode ser esquecida quando esses sintomas surgem em indivíduos com mais de 50 anos.

Para diagnosticar um câncer na bexiga, os médicos recorrem inicialmente ao exame citológico feito na urina, que pode demonstrar a presença de células cancerosas desgarradas do tumor. Outro estudo, a ultrassonografia da bexiga, costuma mostrar o processo canceroso envolvendo as paredes do órgão. O diagnóstico final é confirmado através da cistoscopia, exame visual direto da superfície da bexiga, realizado por meio de um tubo que atravessa o canal uretral.
Estudo apresentado este ano por pesquisadores da Universidade de Pittsburgh descreveu uma proteína denominada BLCA-4 que surge exclusivamente na urina dos pacientes com câncer de bexiga. Esta descoberta trará, provavelmente, benefícios inestimáveis aos portadores da doença, pois ela servirá para identificar, em fases bem precoces, as lesões cancerosas locais.
O tratamento do câncer de bexiga é planejado levando-se em conta a extensão da doença. Os tumores superficiais podem ser eliminados através da ressecção endoscópica, que consiste numa curetagem da lesão feita através de pinças introduzidas pelo canal uretral. Este tipo de tumor tem certa propensão a ressurgir em outros pontos da bexiga depois de algum tempo e este inconveniente pode, em parte, ser atenuado com a aplicação da vacina BCG, de uso comum em imunização contra a tuberculose. Com esta orientação, cerca de 95% dos pacientes estão vivos, e bem, cinco anos após o tratamento.
Os tumores infiltrativos apresentam a conformação de um “iceberg”, o que impede a sua remoção completa através da ressecção endoscópica, por risco de perfuração da bexiga. Estes casos são sempre abordados por cirurgia abdominal, com extração da bexiga e próstata na maioria dos pacientes. Esta intervenção, denominada cistectomia radical, tinha duas consequências temidas: o aparecimento, quase inexorável, de impotência sexual e a criação de desconfortáveis sistemas de escoamento externo da urina, às vezes às custas de um orifício na parede do abdômen, outras vezes com descarga de urina e fezes pelo orifício anal.

Graças aos trabalhos dos drs. Patrick Walsh, do Johns Hopkins Cancer Center (EUA), e Maurice Camey, do Hospital Foch, de Paris, o panorama desanimador para estes pacientes se modificou. Atualmente é possível realizar a cistectomia radical com a preservação da potência sexual em um número substancial de casos. Ademais, consegue-se criar uma bolsa com intestino, denominada neobexiga, que permite ao paciente expelir a urina de forma natural, pelo canal uretral. Na Escola Paulista de Medicina, cerca de 120 pacientes foram tratados por esta técnica, 60% deles preservaram a função sexual e quase todos gozam de excelente qualidade de vida, propiciada pela recuperação de micções fisiológicas.
As consequências destas mudanças não são irrelevantes. Pesquisa realizada pela US TOO, organização não-governamental de apoio aos portadores de câncer urinário, mostrou que, com o tratamento, 45% dos pacientes almejavam usufruir de boa qualidade de vida e 29% gostariam de prolongar o tempo de vida. Em outras palavras, a maioria, mais do que viver muito, perseguia o direito de viver bem.
As chances de cura dos pacientes com tumor infiltrativo submetidos a neobexiga ileal são da ordem de 60% a 80%. Curiosamente, estes índices são quase duas vezes maiores do que aqueles observados com as formas mais antigas de reconstrução do aparelho urinário. Uma provável explicação é que, no passado, os pacientes hesitavam em aceitar a cistectomia pelos seus inconvenientes, o que favorecia o desenvolvimento do tumor e reduzia as possibilidades de cura.
Até há poucos anos, as perspectivas para os pacientes com câncer metastático de bexiga eram sombrias. A partir de estudos pioneiros realizados no Memorial Sloan Kettering Cancer Center, de Nova York, foram criados esquemas mais aperfeiçoados de quimioterapia, coquetel de drogas que injetadas no organismo produzem uma destruição maciça das células cancerosas dispersas. Estes esquemas, identificados por acrônimos tão esquisitos quanto eficientes, como “M-VAC” ou “TIP”, modificaram o panorama para estes casos. Atualmente, entre 30% e 70% dos pacientes com tumor metastático respondem à quimioterapia, muitos deles com cura da doença.

A prevenção do câncer de bexiga não pode ser feita de forma completa, por se desconhecer, presentemente, todos os mecanismos envolvidos com o aparecimento destes tumores. A eliminação do hábito de fumar cigarros constitui a medida profilática mais óbvia. De forma um pouco decepcionante, estudos realizados nos Estados Unidos demonstraram que ex-fumantes continuam propensos a desenvolver a doença até dez anos após a interrupção do hábito, fenômeno que foi observado de forma mais marcante em mulheres.
Em uma pesquisa da Universidade de West Virginia (EUA) publicada em 1997, comprovou-se que o alho pode bloquear o crescimento de tumores de bexiga em camundongos. Se esta observação puder ser confirmada, é provável que a ingestão de cerca de 3,5 gramas de alho por dia venha favorecer a evolução dos portadores da doença.

De acordo com as projeções para 1998, no dia de hoje 110 brasileiros desenvolverão câncer de bexiga e 23 estão morrendo pela doença. Lidas de outra forma, estas previsões indicam que 87 brasileiros ficarão hoje livres desse mal. Número tão auspicioso quanto dados recentes do Instituto Nacional do Câncer, dos EUA, mostrando que as chances de cura destes casos elevaram- se de 53% em 1960 para 83% em 1998 (ver gráfico).

Este movimento auspicioso não aconteceu gratuitamente, mas foi produzido pelo tremendo empenho que médicos e a ciência médica têm dirigido aos portadores da doença. Empenho que resultou não apenas na melhora de índices e estatísticas, permitiu eliminar muitos dos flagelos impostos pelos antigos tratamentos. Como queria Geraldo Vandré.