Câncer de Bexiga em Dó Menor

ARTIGO Folha de São Paulo

“Qualquer canção de dor/ não basta a um sofredor/ não cerze um coração rasgado/ porém ainda é melhor/ sofrer em dó menor/ do que você sofrer calado” (“Qualquer canção”, de Chico Buarque de Holanda)

Envolvido, como todos, por alguma comoção, atrevo-me a escrever sobre o câncer de bexiga, com a esperança íntima de atenuar aflições e com o otimismo de quem testemunha os avanços ímpares que a ciência médica tem apresentado nessa área.

Apesar de esforços desmedidos do Instituto Nacional do Câncer, inexistem no Brasil dados precisos sobre a incidência do câncer de bexiga. Se estatísticas mundiais produzidas pela American Cancer Society puderem ser transportadas para o nosso país, cerca de 35 mil brasileiros serão atingidos pela doença este ano. Com grande desconforto, sou obrigado a reconhecer que cerca de 14 mil casos poderiam ter sido evitados, pois o hábito de fumar é responsável por 40% dos casos.

A influência negativa do cigarro ficou bem definida por um estudo clássico realizado na cidade de Boston, em 1984. Homens que consumiam mais de dois maços de cigarro por dia têm cinco vezes mais chance de serem atingidos pela doença. Esse risco é maior ainda nas mulheres fumantes. Indivíduos que abdicam do hábito continuam com risco elevado, mas a propensão se atenua após dez anos.

Sempre achei as mulheres mais racionais que os homens. Por isso, não entendo por que não mudaram seus hábitos. Como mostram os gráficos, os índices de morte por câncer de bexiga têm caído nos homens e mantêm-se constante nas mulheres. Nos EUA, a porcentagem de homens fumantes diminuiu de 65% para 30%, de 1955 a 95; nas mulheres, o número manteve-se constante, em torno de 30%, no mesmo período.

Para que se possa entender o comportamento do câncer de bexiga, deve-se levar em conta as suas três formas de apresentação. Existe um primeiro tipo, no qual o crescimento descontrolado das células cancerosas fica restrito às camadas mais superficiais e internas da bexiga. Essas lesões, chamadas de superficiais, são encontradas em cerca de 75% dos novos casos. Raramente produzem metástases (disseminação das células tumorais com aparecimento de focos cancerosos em outros órgãos).

Um segundo tipo, denominado infiltrativo, é encontrado em 20% dos novos casos. Caracteriza-se por penetração do tumor nas camadas mais profundas da bexiga, atingindo músculo e gordura. Essa forma, se não tratada a tempo, pode gerar metástases e comprometer a evolução do paciente.
No terceiro tipo, chamado metastático -atinge cerca de 5% dos casos recém-descobertos-, o tumor apresenta-se mais avançado, envolvendo gânglios linfáticos, fígado, pulmão ou ossos. A cura, antes difícil, é atualmente observada em um número razoável de casos tratados com quimioterapia.
Em cerca de 70% dos pacientes o câncer de bexiga manifesta-se sob forma de hematúria, ou seja, presença de sangue vivo na urina. Outros 20% apresentam os chamados sintomas irritativos urinários, como aumento da frequência das micções e ardor para urinar. Vale lembrar que, na grande maioria dos casos, o aparecimento dessas manifestações está relacionado com problemas urinários mais simples, como cálculos e infecções da bexiga. Contudo a possibilidade de câncer não pode ser esquecida quando esses sintomas surgem em indivíduos com mais de 50 anos.

Para diagnosticar um câncer na bexiga, os médicos recorrem inicialmente ao exame citológico feito na urina, que pode demonstrar a presença de células cancerosas desgarradas do tumor. Outro estudo, a ultrassonografia da bexiga, costuma mostrar o processo canceroso envolvendo as paredes do órgão. O diagnóstico final é confirmado por meio da cistoscopia, exame visual direto da superfície interna da bexiga, realizado por meio de um tubo que atravessa o canal uretral.

O tratamento do câncer de bexiga é planejado levando-se em conta a extensão da doença. Os tumores superficiais podem ser eliminados pela ressecção endoscópica, uma curetagem da lesão feita com pinças introduzidas no canal uretral. Esse tipo de tumor tem certa propensão a ressurgir em outros pontos da bexiga depois de algum tempo. Esse inconveniente pode, em parte, ser atenuado com a aplicação da vacina BCG, de uso comum em imunização contra a tuberculose. Com essa orientação, cerca de 95% dos pacientes estão vivos e bem cinco anos após o tratamento.

Os tumores infiltrativos apresentam a conformação de um iceberg, com raízes profundas que impedem a sua remoção completa por meio da ressecção endoscópica, por causa do risco de perfuração da bexiga. Esses casos são sempre abordados por cirurgia abdominal, com extração da bexiga e da próstata na maioria dos pacientes. Essa intervenção, denominada cistectomia radical, tinha duas consequências temidas: o aparecimento, quase inexorável, de impotência sexual e a necessidade de os pacientes passarem a carregar um incômodo saco plástico no abdome, para conter o escoamento externo da urina. Graças aos trabalhos dos doutores Patrick Walsh, do Johns Hopkins Cancer Center (EUA), e Maurice Camey, do Hospital Foch, de Paris, o panorama desanimador para esses pacientes se modificou. Hoje é possível realizar a cistectomia radical com a preservação da potência sexual em um número substancial de casos. Consegue-se criar uma bolsa com o intestino, denominada neobexiga, que permite ao paciente expelir a urina de forma natural, pelo canal uretral.
As consequências dessas mudanças não são irrelevantes. Pesquisa realizada pela US TOO, organização não-governamental de apoio aos portadores de câncer urinário, mostrou que, com o tratamento, 45% dos pacientes almejavam usufruir de boa qualidade de vida e 29% gostariam de prolongar o tempo de vida. Em outras palavras, a maioria, mais do que viver muito, perseguia o direito de viver bem.

Até há poucos anos, as perspectivas para os pacientes com câncer metastático de bexiga eram sombrias. A partir de estudos pioneiros realizados no Memorial Sloan Kettering Cancer Center, de Nova York, foram criados esquemas mais aperfeiçoados de quimioterapia, como o coquetel de drogas que injetadas no organismo produzem uma destruição maciça das células cancerosas dispersas. Esses esquemas, identificados por acrônimos tão esquisitos quanto eficientes, como “M-VAC” ou “TIP”, modificaram o panorama: de 30% a 70% dos pacientes com tumor metastático respondem hoje à quimioterapia, muitos com cura da doença.
Perspectivas auspiciosas estão surgindo no horizonte dos pacientes com câncer de bexiga. Novas drogas têm permitido que os casos mais delicados, como aqueles que apresentam recrudescimento do tumor algum tempo após o tratamento inicial, possam ser resgatados para a vida. Um desses agentes, a gencitabina, quando administrado com outros dois compostos, a cisplatina ou a adriamicina, pode produzir desaparecimento completo de lesões que, de outra maneira, seriam eliminadas com muita dificuldade e sofrimento. Estudo publicado em setembro último numa das mais conceituadas revistas internacionais de câncer, o “Journal of Clinical Oncology”, demonstrou que 49% dos pacientes com câncer avançado de bexiga, tiveram regressão objetiva do tumor quando tratados com a combinação de gencitabina e cisplatina. Isso de forma animadora, com menos efeitos colaterais dos que aqueles observados com as drogas usualmente empregadas nesses casos. E sem a necessidade de realizar cirurgia ou radioterapia concomitante -formas de tratamento que, em pacientes com doença mais delicada, nem sempre contribuem para a cura e podem debilitar ainda mais o organismo.

Outro movimento auspicioso que está surgindo para os pacientes com câncer de bexiga relaciona-se com a utilização da chamada terapia gênica. Por meio de técnicas apuradas de laboratório, tem sido possível inserir, no código genético das células cancerosas, sistemas que levam a produção de proteínas suicidas, que promovem a morte do tumor. Estudos iniciais em seres humanos estão sendo desenvolvidos nas universidades do Texas e de San Francisco. Talvez representem o marco inicial de uma era na qual tratamentos mais racionais e menos agressivos serão utilizados em tratamentos do câncer de bexiga.
Curiosamente esses avanços estão ocorrendo junto a uma mudança também auspiciosa na percepção médica. A ideia que as células cancerosas devem ser perseguidas obsessivamente, com bisturis, agentes tóxicos ou cargas maciças de radiação, está deixando de sensibilizar os especialistas mais conscientes.
Tanto a evolução clínica dos portadores de câncer quanto os efeitos positivos e nefastos do tratamento são marcadamente influenciados pelo contexto emocional e social que envolve o paciente. Alguns exemplos demonstram o valor ímpar que o suporte espiritual tem no sentido de prolongar a vida e favorecer a cura dos pacientes atingidos por doenças malignas.

Estudo realizado nos EUA em 1989 com mulheres portadoras de câncer de mama avançado demonstrou que 40% das que receberam uma hora e meia por semana de suporte de grupo estavam vivas e bem após cinco anos, contrastando com nenhum caso na parcela que não recebeu tratamento de suporte psicológico. Outro estudo, realizado na Suécia em 1987 com 17 mil homens, demonstrou que havia uma relação íntima entre o isolamento social e o número de óbitos por câncer. As chances de morte pela doença foram quatro vezes maior nos indivíduos que viviam sozinhos ou isolados da comunidade.
O relacionamento solidário entre todos os participantes do processo, pacientes, médicos e família, constitui uma das forças mais sólidas para ajudar e fortalecer o portador de um câncer na sua luta contra o mal. Posturas otimistas ingênuas, do tipo “fique tranquilo que você com certeza vai sarar”, têm de ser substituídas pelo diálogo franco e pela demonstração contínua de que algo racional está sendo perseguido, pela postura “estarei do seu lado, lutando com todas as minhas forças por você”. Para, se possível, que o câncer possa ser erradicado ou, pelo menos, para que a doença seja transformada num processo crônico, como muitas outras doenças que permitem uma sobrevida longa e com boa qualidade de vida. Tudo num concerto em que todos os personagens se expressam de forma solidária e com sentimentos puros. Porque, como diz Chico, é melhor sofrer em dó menor do que sofrer calado.